Eu sempre vi esta foto como uma imagem poderosa de dois homens negros descalços, cabeça inclinada para baixo e punho erguido vestindo uma luva preta enquanto era executado o hino nacional dos EUA – Smith venceu a prova, e Carlos ficou com a medalha de bronze. Foi um forte gesto simbólico de apoio aos direitos civis dos negros americanos em um ano de tragédias como os assassinatos de Martin Luther King e Bobby Kennedy.
É uma foto histórica de dois homens negros. Por esta razão, nunca prestei atenção no outro homem, branco como eu, imóvel no degrau reservado ao medalhista de prata. Eu o considerava uma presença aleatória, um tipo de intruso no momento de Carlos e Smith. Na verdade, eu até pensei que esse cara representava, em sua imobilidade, a resistência à mudança que os dois colegas invocavam em seu protesto silencioso. Mas eu estava errado.
Graças a um antigo artigo de Gianni Mura, hoje eu descobri a verdade: o homem branco na foto é, talvez, o maior herói daquela noite em 1968. Seu nome era Peter Norman, ele era um australiano que chegou à final dos 200 metros rasos depois de conseguir a incrível marca de 20s22 nas semifinais. Apenas os dois americanos fizeram melhor: Tommie “O Jato” Smith fechou com 20s14 e John Carlos, 20s12.
Parecia que a vitória seria decidida entre os dois americanos. Norman era um corredor desconhecido, que talvez apenas tivesse feito duas boas baterias. John Carlos, anos depois, disse que foi perguntado o que deu naquele homem branco baixinho que, com seu 1,68 m, correu tão rápido quanto ele e Smith, que tinham mais de 1,90 m.
Chegou a hora da final, e o intruso Norman faz a corrida de sua vida, melhorando mais uma vez seu tempo. Ele fechou a prova em 20s06, marca que até hoje, 48 anos depois, ainda é o recorde australiano.
Mas aquele tempo não era suficiente, porque Tommie Smith era realmente um jato e quebrou o recorde mundial para conquistar a medalha de ouro: 19s83.
Foi uma grande corrida, ainda que nunca será tão memorável quanto o que aconteceu na cerimônia de premiação.
Não demorou muito para que se percebesse que algo grande, sem precedentes, estava para acontecer na cerimônia do pódio. Smith e Carlos decidiram mostrar ao mundo inteiro sua luta pelos direitos humanos e a notícia se espalhou entre os atletas.
Norman era um homem branco da Austrália, um país que tinha leis rigorosas de segregação racial, quase tanto quanto a África do Sul. Havia tensão e protestos nas ruas e restrições severas para imigração de não-brancos, assim como leis discriminatórias contra pessoas de origem aborígene, algumas das quais foram obrigadas a entregar crianças para adoção por famílias brancas.
Os dois americanos perguntaram a Norman se ele acreditava nos direitos humanos. O australiano respondeu que sim. Eles então questionaram se o colega acreditava em Deus, e ele, que estivera no Exército da Salvação, afirmou que acreditava fortemente. “Nós sabíamos que o que estávamos para fazer era maior que qualquer momento esportivo e ‘Eu estou com vocês’ foi o que ele nos disse”, lembrou John Carlos. “Eu esperava ver medo nos olhos de Norman, mas em vez disso eu vi amor”.
Smith e Carlos decidiram entrar no estádio usando o brasão do Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos, um movimento de atletas em apoio à luta pela igualdade.
Eles receberiam descalços suas medalhas, representando a pobreza dos negros. Eles vestiriam as famosas luvas negras, símbolo da causa dos Panteras Negras. Mas antes de ir para a cerimônia, perceberam que tinham apenas um par de luvas. “Peguem uma cada um”, Norman sugeriu. E Smith e Carlos aceitaram o conselho.
'Eu esperava ver medo nos olhos de Norman, mas em vez disso eu vi amor', disse John Carlos
Mas então Norman fez algo a mais. “Eu acredito no que vocês acreditam. Vocês têm outro destes pra mim?”, perguntou, apontando para o brasão do Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos que estava no peito dos americanos. “É assim que posso mostrar meu apoio à sua causa”. Smith admitiu ter ficado atônito, ruminando: “Quem é este australiano branco? Ele ganhou a medalha de prata, ele não pode simplesmente pegá-la e pronto?”.
Smith respondeu que não tinha. Mas então Paul Hoffman, remador americano que estava com eles e era ativista do projeto, resolveu a situação. “Se um branco australiano está pedindo um brasão do Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos, então, por Deus, ele teria um. Eu lhe dei o único que eu tinha: o meu”, contou.
Os três foram para a pista e subiram no pódio. O resto é história, preservada pelo poder de uma foto. “Eu não pude ver o que estava acontecendo”, Norman contou. “[Mas] eu sabia que eles tinham ido adiante com seus planos quando uma voz na multidão começou a cantar o hino e em logo em seguida se calou. O estádio ficou quieto”, disse.
O chefe da delegação dos EUA jurou que aqueles atletas pagariam a vida inteira por aquele gesto que, segundo ele, nada tinha a ver com o esporte. Smith e Carlos foram imediatamente suspensos da equipe americana e expulsos da vila olímpica, enquanto Hoffman, o remador, foi acusado de conspiração. De volta para casa, dois dos homens mais velozes do mundo enfrentaram dura repercussão e ameaças de morte.
Mas, no fim, o tempo provou que eles estavam certos e ambos se tornaram campeões pelos direitos humanos. Com sua imagem recuperada, colaboraram com a equipe americana de atletismo, e uma estátua dos dois foi erguida na Universidade Estadual de San José, na Califórnia. Na homenagem, Peter Norman não aparece em seu lugar no pódio. Sua ausência parece um epitáfio do qual nunca se ouviu falar. Um atleta esquecido, apagado da história até na Austrália, seu país.
Quatro anos depois, nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, Norman não fez parte da delegação australiana, apesar de ter feito o índice 13 vezes para os 200 metros rasos e outras cinco vezes para os 100 metros rasos. Um desapontamento que fez o medalhista de prata deixar o atletismo competitivo para trás e só se dedicar ao nível amador.
Fora do grupo dos conservadores da Austrália branca, foi tratado como um forasteiro, desprezado por parte da própria família e emprego tornou-se quase impossível de conseguir. Por um tempo trabalhou como professor de ginástica, lutando contra desigualdades como sindicalista, e em um açougue. Um machucado fez Norman ter uma gangrena que o levou à depressão e ao alcoolismo. Como disse John Carlos, “se nós [ele e Smith] estávamos apanhando, Peter estava enfrenando um país inteiro e sofrendo sozinho”.
O australiano se recusou várias vezes a condenar o gesto dos colegas. Morreu aos 54 anos, em 2006
Durante anos, Norman teve apenas uma chance de se salvar: foi convidado a condenar o gesto de seus colegas de pódio em troca de perdão do sistema que o condenou ao ostracismo. Um perdão que lhe permitiria encontrar um emprego estável por meio do Comitê Olímpico Australiano e fazer parte da organização dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000. Norman nunca cedeu e jamais condenou a escolha dos dois americanos.
Ele foi o melhor velocista australiano da história e ainda é dono do recorde nacional dos 200 metros rasos, mas não foi convidado para os Jogos de Sydney. O Comitê Olímpico dos EUA soube da questão e convidou Norman para se juntar a seu grupo e ir à festa de aniversário do campeão olímpico e recordista mundial dos 200 metros rasos Michael Johnson, para quem Peter Norman era um exemplo e um herói.
O australiano morreu precocemente em 2006, aos 54 anos, vítima de um ataque cardíaco. Enquanto vivo, seu país nunca se desculpou pela forma que o tratou. Em seu funeral, Tommie Smith e John Carlos, que se tornaram amigos de Norman desde aquele pódio em 1968, ficaram na frente entre os que carregaram seu caixão, tratando-o como um herói.
“Peter foi um soldado solitário. Ele conscientemente escolheu ser um cordeiro sacrificado em nome dos direitos humanos. Não existe alguém que a Austrália deva honrar e reconhecer mais do que ele”, disse John Carlos. “Ele pagou o preço com sua escolha. Não foi apenas um simples gesto para nos ajudar, foi sua luta também. Ele era um homem branco, um branco australiano ao lado de dois homens negros, de pé no momento da vitória, todos em nome da mesma causa”, falou Tommie Smith.
Apenas em 2012 o parlamento australiano aprovou moção para um pedido formal de desculpas a Norman e para reescrever sua trajetória na história com este comunicado:
Esta Casa reconhece as extraordinárias conquistas esportivas do falecido Peter Norman, que ganhou a medalha de prata nos 200 metros rasos nos Jogos Olímpicos da Cidade do México 1968, com o tempo de 20s06, que ainda é o recorde australiano.
Reconhece a bravura de Peter Norman em vestir o brasão do Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos no pódio, em solidariedade aos atletas afroamericanos Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação ‘black power’.
Se desculpa com Peter Norman pelo erro da Austrália ao não mandá-lo para os Jogos Olímpicos de Munique 1972, apesar de repetidamente ter conseguido a classificação. E reconhece tardiamente o poderoso papel que Peter Norman teve na divulgação da causa da igualdade racial.
'Se dividir a medalha com aquele incidente ofuscou meu desempenho? Ao contrário', disse
Entretanto, talvez as palavras que melhor nos fazem lembrar de Peter Norman são as suas próprias quando descreveu as razões pelo seu gesto, no documentário “Salute” (2008), escrito, dirigido e produzido por seu sobrinho Matt Norman.
“Eu não conseguia ver por que um homem negro não podia beber a mesma água da mesma fonte, pegar o mesmo ônibus ou ir à mesma escola que um homem branco. Havia uma injustiça social, e eu não podia fazer nada a respeito de onde eu estava, mas eu certamente a odiava. Há quem diga que dividir minha medalha de prata com aquele incidente nos degraus da vitória ofuscou meu desempenho. Ao contrário. Eu tenho de confessar que estava bastante orgulhoso em fazer parte daquilo.”
Tradução: Rodrigo Borges. Algumas informações foram acrescentadas ao texto original para melhor compreensão do leitor. Em seu site, o autor fala mais sobre Peter Norman.
NM com Creative Commons
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